Com posse na AML, autor e ativista reafirma presença dos povos originários na produção intelectual
Ailton Krenak é o primeiro indígena a integrar uma entidade como a Academia Mineira de Letras, mas espera ter dado início a um movimento sem volta. “Eu acredito que essa atenção que a Academia Mineira de Letras sinaliza em relação à cultura indígena, à produção intelectual, à literatura indígena vai influenciar para que outros espaços como esse acolham outros escritores indígenas que estão no Pará, no Amazonas”, exemplificou o filósofo e ativista na última sexta-feira (3/3), durante cerimônia de posse em BH.
A produção intelectual do autor mineiro teve grande impacto no Brasil desde a redemocratização, e abriu portas para mais pessoas que alimentam a discussão da causa indígena no país. “Temos autores indígenas em diversos lugares e essa expressão cresceu muito, publicando até fora do Brasil. Então eu espero que não fiquem só na apreciação da minha produção, espero que isso se amplie”, observou o acadêmico.
Eleito em julho do ano passado pelos colegas da AML, Krenak é uma das principais lideranças indígenas brasileiras no campo das ideias e no debate público. Suas contribuições para a luta dos povos originários vão desde a atuação política, como ambientalista e mobilizador social, até sua coleção de publicações em diferentes campos do conhecimento, traduzidas em vários idiomas. Sua atuação como intelectual o colocou em posições de destaque durante discussões importantes para o país, desde a Assembleia Constituinte de 1987 até os recentes desdobramentos do desastre ambiental no Rio Doce que afetou irreversivelmente a cultura de povos indígenas ribeirinhos – dentre os quais estão os Krenak.
Com leitores e admiradores espalhados pelo mundo, obras de Ailton como ‘Ideias para adiar o fim do mundo’ (2019) e ‘A Vida não é Útil’ (2020) debatem causas indígenas a partir da filosofia, e apresentam uma visão de mundo que questiona as organizações sociais responsáveis por afastar o homem do convívio harmonioso com a natureza. O autor também evoca memórias afetivas e coletivas do território de seu povo na etnografia ‘O Lugar Onde a Terra Descansa’ (2001), além de ter mergulhado no lirismo dos relatos originários com o recente ‘Dossiê Sobre a Poesia Indígena’ (2022), organizado por ele e publicado pela Revista da AML no ano passado.
A produção literária de Ailton carrega em si a tradição da oralidade, comum aos povos originários: as obras são registradas a partir de sua fala – as publicações são transcrições de discursos, palestras e intervenções orais do autor. Ele também é professor e doutor honoris causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), onde leciona na pós-graduação, além de ter sido o primeiro indígena a receber o título de doutor honoris causa pela Universidade de Brasília (UnB).
Ailton Krenak tomou posse na sede da Academia Mineira de Letras acompanhado por familiares, pela presidente da Funai, Joenia Wapichana e pelo cacique Rondon Krenak. Assumiu a cadeira 24 da instituição, cuja patronesse é a poeta e inconfidente Bárbara Heliodora, em vaga deixada pelo jornalista e escritor Eduardo Almeida Reis (1937-2022).
Moradores das margens do Rio Doce desde o início do século XX, o povo Krenak já tinha raízes profundas em Minas quando Ailton veio ao mundo, em 1953. A luta ancestral dos povos originários segue viva até hoje, mas a contribuição do mineiro tem sido única. É dele o discurso durante a Assembleia Constituinte, em 1987, que exigia aprovação de emenda sobre os direitos indígenas. Até então, o texto apresentava o que se considerava uma inclinação anti-indígena em sua elaboração.
No púlpito da Câmara dos Deputados, o ativista fez seu apelo veemente enquanto pintava o próprio rosto com tinta de jenipapo – o gesto carrega significado de luto na cultura Krenak e, naquela situação, manifestava a desesperança dos povos originários com a nova Constituição. O ato repercutiu intensamente na opinião pública e culminou na aprovação de um capítulo dedicado à proteção dos direitos indígenas no texto de 1988. Graças a este acréscimo, decisões do Brasil que violem os direitos dos povos originários podem ser questionadas na Corte Interamericana de Direitos Humanos, como ocorreu em 2018 quando o país foi condenado pelas falhas no processo de demarcação do território Xucuru.