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Autor revela motivos que o levaram a escrever livro sobre a travesti Cintura Fina

Na biografia “Enverga, mas não quebra”, Luiz Morando detalha a vida da travesti que viveu sobre a lâmina de uma sociedade conservadora



Créditos da imagem: Lucas Ávila
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Escritor Luiz Morando é especialista em memória LGBTQIA+, mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura Comparada, ambos pela UFMG
Redação Sou BH
12/02/21 às 11:41
Atualizado em 12/02/21 às 11:41

Marilyn Monroe dos detentos, anormal, useiro e vezeiro no uso da navalha. Refinado malandro, pederasta, meliante. Larápio, gatuno, invertido sexual. Famigerado travesti. Eram essas as alcunhas usadas pela imprensa para se referir a Cintura Fina, a travesti que marcou época na provinciana Belo Horizonte dos idos de 1950.

Nascida em 1933, Cintura Fina morreu aos 62 anos, na cidade mineira de Uberaba, onde passou os últimos 15 anos de sua vida. Agora, finalmente tem sua movimentada vida retratada no livro Enverga, mas não quebra, escrito pelo pesquisador Luiz Morando, especialista em memória LGBTQIA+.

Confira abaixo a entrevista com o autor Luiz Morando, que é especialista em memória LGBTQIA+, mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura Comparada, ambos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

 

Por quais motivos você escolheu escrever um livro sobre Cintura Fina?

 

De imediato, posso destacar três motivos: primeiro, porque ela faz parte de um projeto pessoal maior que tenho de recuperação da memória da população LGBTQIA+ de Belo Horizonte, de suas formas de construção de sociabilidades e convivência. Mas dentro desse projeto, ela ganha autonomia e relevância próprias por suas características. Segundo, porque ela foi a primeira travesti (ressalvando algumas especificidades que esse termo tem em décadas anteriores à de 1970) a ganhar notoriedade em Belo Horizonte, estabelecendo-se abertamente na cidade em função de como ela performava sua travestilidade. Terceiro, porque era necessário reposicionar sua imagem, retirando os elementos lendários/míticos que foram sobrepostos a ela por diversos discursos (polícia, imprensa, médico-legal, jurídico, popular) e humanizando mais sua figura.

 

O que mais te chama atenção na personalidade dela?

 

Dois elementos centrais me chamam mais a atenção na personalidade de Cintura Fina: 1. a solidariedade com mulheres mais vulneráveis, em posição de inferioridade com seus parceiros sexuais, sobretudo as profissionais do sexo, ao oferecer ajuda e proteção contra seus parceiros; 2. uma ética de vida fundada na exigência de respeito ao seu modo de ser: ela não aceitava injúria ou insulto à sua forma de se manifestar e performar a expressão de sua sexualidade.

 

Parece que ela era bastante destemida. Qual fato de ousadia dela você destacaria nas suas pesquisas?

 

Acho que para a época, sobretudo nos anos 1950-60, a ousadia dela estava em performar uma imagem feminina à luz do dia, na rua. Isso não era pouca coisa para a época. Em 1953, em sua primeira detenção policial na cidade, ela foi levada para a delegacia vestida com traje feminino, maquiada, sobrancelhas pinçadas, unhas esmaltadas, cabelos cortados ao modo feminino. Isso foi uma constante nessas duas décadas. Era ousadia suficiente aos olhos da população e da imprensa, que viam isso como excentricidade e rompimento de regras sociais. E havia o destemor por ser muito hábil no manejo da navalha e usar essa arma branca apenas para se defender de ataques.

 

Há anos você se dedica a pesquisas sobre a memória LGBT. Qual a importância desse trabalho, na sua avaliação?

 

O Brasil não tem uma tradição de preservação e cuidado da memória de grupos sociais. O segmento LGBTQIA+ sempre esteve fora desse foco, apagado por uma perspectiva hegemônica que o considera marginal e subalterno. No entanto, temos representantes que deram grandes contribuições ao longo da construção da identidade cultural brasileira e que têm essa faceta de sua imagem dissolvida pela cultura hegemônica. Belo Horizonte não foge a isso, com o agravante de, em comparação a Rio de Janeiro e São Paulo, não ter um grupo numeroso de pessoas interessadas e envolvidas com o desenvolvimento do processo de recuperação dessa memória. Executar esse projeto ajuda a naturalizar a percepção de que sempre existimos, sempre estivemos presentes, sempre tentamos nos organizar socialmente, de que não somos solitários, incapazes ou minoritários como aquela perspectiva sempre representou.

 

Como a imprensa retratava Cintura Fina e pessoas LGBT na época?

 

Sempre com um tom negativo e pejorativo, rebaixador e subalternizante, cuja origem vinha das ciências médicas e perpassava o discurso jurídico, policial e religioso. Termos como anormal, invertido, pederasta, tarado, pervertido, afeminado eram utilizados corriqueiramente para se referir a homens homossexuais, a lésbicas e a travestis. Em particular, Cintura Fina foi revestida de todos esses termos, além daqueles que tentavam indicar os territórios pelos quais transitava: marginal, delinquente, desordeiro, vadio, malandro. Nesse sentido, a imprensa encarnava nela várias combinações daqueles dois paradigmas, acentuando sua aparente periculosidade para a população. Isso acaba por criar um paradoxo aparente, pois uma boa parte da população também a considerava boa, solidária, gentil, caridosa, protetora, acolhedora.

 

E como era o tratamento da sociedade com a Cintura Fina?

 

Uma parte da sociedade refletia a representação forjada pela imprensa, retroalimentando aquela visão. Outra parte reconhecia em Cintura Fina uma convivência harmônica desde que ninguém a importunasse ou, diante do assédio dela, soubesse recusá-la de maneira respeitosa. São diversos os relatos de quem a conheceu na zona boêmia que confirmam uma interação pacífica.

 

Qual resumo você faria sobre a vida de Cintura Fina? Foi uma existência de luta ou uma vida triste e marcada pelo preconceito?

 

Eu tento marcar em meu livro um processo gradual em que Cintura Fina se desloca de uma existência de luta, de enfrentamento contra um padrão que insiste em vê-la como marginal e perigosa para um período em que ela tenta se descolar desse nome, já saturado daqueles índices de rebeldia social e marginalidade, e adotar uma vida mais pacata. Esse processo é paralelo à trajetória de decadência e deterioração do território de boemia e prostituição das regiões central, da Lagoinha e do Bonfim em Belo Horizonte. Então, da década de 1950 à de 1980 é possível enxergar a deterioração física dessas duas instituições (sem exagero): da zona boêmia e de Cintura Fina.