Visitantes vão poder acompanhar de perto o processo de restauração de três obras de Aleijadinho: as imagens de Sant’Ana Mestra, de São Joaquim e de São Manuel
A partir desta quarta-feira (3), a Casa Fiat de Cultura volta a receber o público presencialmente e os visitantes vão poder acompanhar de perto o processo de restauração de três obras de Aleijadinho (1738-1814): as imagens de Sant’Ana Mestra, de São Joaquim e de São Manuel.
No dia 2 de dezembro, será inaugurada a mostra que revela as obras de São Joaquim e São Manuel já restauradas, enquanto Sant’Ana continua em processo de restauro, ao vivo, para apreciação do público. Pelas redes sociais, uma websérie vai apresentar o making of de todo o processo e aspectos da vida e da obra de Aleijadinho.
“Restaurar obras do século XVIII revela, além de suas características e peculiaridades, a importância do seu gênio criador, o mestre Aleijadinho. Restaurar é respeitar o passado e, ao mesmo tempo, reconstruir a esperança no futuro. Ao oferecermos a oportunidade de o público acompanhar um restauro ao vivo, estamos, uma vez mais, a cumprir nosso papel de valorizar a cultura e os múltiplos saberes, formando públicos aptos a vivenciar as muitas dimensões da arte”, afirma o presidente da Casa Fiat de Cultura, Fernão Silveira.
A restauração das três obras de Aleijadinho será feita pelo Grupo Oficina de Restauro, com o acompanhamento técnico do IPHAN. A dinâmica a ser desenvolvida na Casa Fiat de Cultura permitirá a aproximação entre os visitantes e os restauradores, que poderão acompanhar todo o passo a passo e conhecer os bastidores de um restauro, seja por meio de visitas presenciais agendadas, seja através das vitrines da Casa Fiat de Cultura ou, ainda, pela programação virtual, que inclui a websérie “Aleijadinho, arte revelada: o legado de um restauro na Casa Fiat de Cultura”.
De acordo com a restauradora e coordenadora do projeto de restauro, Rosangela Reis Costa, as obras apresentam um estado de conservação regular em diferentes estágios, com danos naturais causados pela ação do tempo: início de ataque de cupim e fissuras possivelmente provenientes da movimentação da madeira, especialmente em partes que se supõe tratar das junções entre os blocos utilizados em sua confecção.
Em se tratando da pintura, a imagem de Sant’Ana tem muitas falhas, São Manuel apresenta manchas e craquelês em quase todas as áreas; já em São Joaquim, quase não é possível encontrar resquícios da pintura original. “O processo de restauração é importante para impedir que sejam gerados danos permanentes e irreparáveis”, pontua.
Todas as imagens passarão pelo mesmo processo de intervenção, o que inclui, dentre outras etapas, higienização da obra, contenção de fissuras, complementação de partes faltantes com massa, reintegração de lacunas e manchas, complementação de partes faltantes com massa e, por fim, a aplicação de verniz, que protege a superfície e permite o ajuste do brilho da peça.
Além disso, as peças serão colocadas em uma bolsa sem a presença de oxigênio – tratamento totalmente atóxico, que usa tecnologia de ponta, que garante a total desinfestação de cupins em madeira –, e imunizadas por uma barreira química para evitar novos ataques. “A intervenção que faremos será o mais sutil possível e apta de ser retratável, de modo a não impedir futuras restaurações. Afinal, estamos atuando com o resgate da cultura, das memórias e, principalmente, com a preservação da história de um grande mestre”, reforça a restauradora Rosangela.
O legado de Aleijadinho será rememorado pela Casa Fiat de Cultura por meio do processo de restauro das obras de Sant’Ana Mestra, pertencente à Capela de Sant’Ana, da comunidade de Chapada de Ouro Preto/MG; de São Joaquim, da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Raposos/MG; e de São Manuel, do acervo da Paróquia de Nossa Senhora do Bonsucesso, em Caeté/MG. A iniciativa acontece 60 anos depois que Jair Afonso Inácio, conservador-restaurador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), após restaurar a imagem de Sant’Ana Mestra, teve a oportunidade de observar as características definidoras do estilo que culminaram com a atribuição da peça a Aleijadinho.
A iconografia de Sant’Ana Mestra representa uma cena em que a santa, já idosa, sentada em uma cadeira vermelha, ensina sua filha Maria, de pé ao seu lado direito, as primeiras letras em um livro aberto sobre seu colo. Mãe de Maria e avó de Jesus, Sant’Ana é considerada a protetora dos lares e da família, bem como dos mineradores. Em Minas Gerais, diversas igrejas e capelas são dedicadas à santa, que também tem sua imagem replicada em oratórios em muitos lares brasileiros – devoção que começa no período colonial e segue até hoje.
A imagem de Sant’Ana Mestra representa o modelo maternal e, por extensão, os valores da educação, da formação, especialmente moral e religiosa. Foi produzida na maturidade de Aleijadinho, na virada do séc. 18 para o séc. 19, sendo possivelmente contemporânea às imagens de Congonhas. A representação de uma cena estática, mas que traduz grande movimentação, por meio dos direcionamentos das dobras das vestes, das linhas de força que se entrecruzam e que levam o espectador, a cada momento, a dirigir seu foco para uma posição distinta da imagem são características bastante representativas do estilo barroco. Entretanto, a presença da rocalha na cadeira, a elegância de seu espaldar com áreas vazadas, e até mesmo o alongamento na representação de Sant’Ana indicam um trabalho já ao gosto do rococó.
Em Minas Gerais, o imenso culto a Sant’Ana fez com que a devoção a São Joaquim – avô do Menino Jesus – fosse, da mesma forma, largamente disseminada entre a população católica. Nessa imagem da fase madura de Aleijadinho, entre os séculos 18 e 19, São Joaquim é representado com idade avançada, barba e cabelos de coloração acinzentada, tendo como atributo o cajado. A diagonalização de suas linhas composicionais, o olhar e um dos pés dirigidos para um dos lados; a mão aberta em direção oposta a eles; a posição do cajado em relação às linhas do seu manto são todas características barrocas, mas já com alongamento e elegância do rococó.
Já a imagem de São Manuel é misteriosa: trata-se de um santo oriental, vindo da Pérsia, que surge somente em textos apócrifos, mas conquista fiéis em Portugal e alcança a religiosidade em Minas Gerais. Na representação de Aleijadinho, o santo tem o corpo perfurado por cravos, que atravessam seus ouvidos e as laterais do peito, e apresenta, no pescoço, a marca de sua decapitação. Em pé e com as mãos postas, leva na cintura um pano belamente drapeado, e à cabeça um resplendor de prata. Toda a composição é bastante vertical, uma referência ao rococó.
Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, era um homem pardo, filho de mulher negra e escravizada, que nasceu na primeira metade do século 18. Suas dificuldades físicas não o impediram de trabalhar até cerca de dois anos antes de sua morte, tampouco afetaram a delicadeza de suas obras, repletas de características muito específicas, como os desenhos dos cabelos cacheados, dos olhos, geralmente amendoados, das sobrancelhas arqueadas, e dos narizes com delineamento longo e estreito. O artista – que foi entalhador, escultor e arquiteto – aprendeu seu ofício na prática, sem estudos, mas seu talento e sua representatividade na arte brasileira o tornaram reconhecido mundialmente.
Um dos mais importantes nomes do barroco e do rococó, Aleijadinho teve o período de maior desenvolvimento de sua arte entre os séculos 18 e 19. Um grande destaque em sua trajetória é o conjunto em Congonhas, obra complexa, que envolve narrativa, arquitetura e paisagem e, hoje, é registrada como Patrimônio Cultural Mundial pela Unesco. Além do conjunto, o mestre deixou como legado importantes obras, que fazem parte não somente da história de Minas Gerais, mas também de várias cidades pelo país. Por mais que, à época, Aleijadinho pudesse não imaginar que seu ofício se reverberaria como arte, as obras sacras e seu rico trabalho arquitetônico se tornaram referência no que se conhece como um dos primeiros processos artísticos genuinamente brasileiro.
Serviço
“Aleijadinho, arte revelada: o legado de um restauro na Casa Fiat de Cultura”
Ateliê-vitrine de restauro ao vivo: 3 a 30 de novembro de 2021
Período expositivo de obras restauradas: 2 de dezembro de 2021 a 2 de janeiro de 2022
Visitas presenciais mediadas em novembro
De quarta a sexta-feira, das 14h às 15h e das 17h às 18h
Sábados (6/11 e 27/11), das 10h30 às 11h30
Inscrições gratuitas pela Sympla
Casa Fiat de Cultura – Praça da Liberdade, 10 – Funcionários – BH/MG