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Orgulho e Diversidade

No mês destinado a visibilidade LGBTQIA+, o Sou BH bateu um papo com Giovanna Heliodoro, a @transpreta



Créditos da imagem: Kalen Martin-Gross/ shutterstock
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Redação
28/06/20 às 12:00
Atualizado em 28/06/20 às 12:00

No mês destinado ao orgulho e a diversidade LGBTQIA+, o Sou BH tem o prazer de entrevistar Giovanna Heliodoro, travesti, trans e preta. Confira! 

1 – Como e quando você começou a se entender transexual?

Bom, eu acredito que enquanto uma travesti preta, uma transexual, o meu processo de me assumir como uma pessoa LGBTQIA+ se deu em três etapas: a inicial foi quando descobri, por meio da arte, que era possível que existissem outras sexualidades para além da hétero. Em seguida, me descobri e me assumi enquanto bissexual, me relacionando com mulheres e com homens. Em outro momento, percebi que assumir só a minha sexualidade não era o suficiente. Haviam outros processos na minha vida que precisavam ser resolvidos para que eu conseguisse atingir autoconhecimento sobre o meu corpo e sobre quem eu era. Nessa mesma etapa, me assumi enquanto mulher trans, enquanto uma travesti, e esse processo foi mais complicado, porque assumir a sexualidade é um processo que ainda é mais naturalizado pela sociedade, mas assumir a identidade de gênero é algo mais complexo, sobretudo quando você é uma pessoa transexual e travesti não hétero. Por fim, na terceira etapa, passei a me relacionar com outras pessoas que integram a sigla “T”, pessoas transgêneros reconhecidas como não binárias e descobri outro termo que me contemplava mais que a bissexualidade. Então, eu entendi que ser uma travesti, uma transexual e pansexual era o que me contemplava. 

2 – Como você deu início ao processo de transição? Como família e amigos lidaram com a situação?

Então, eu acho que meu processo de transição se deu de uma forma contínua. As pessoas sempre acham que existe um momento em que você era uma pessoa cisgênero e, de repente, você virou trans, uma mulher ou um homem. Mas não é assim! Desde a minha infância, eu já reconhecia alguns traços que fizessem com que eu não me reconhecesse como uma pessoa cisgênero ou heterossexual. Só que ao longo do tempo, fui assumindo esses processos e me conhecendo. E com a minha família, tenho uma relação muito boa. Me assumir como bissexual foi mais tranquilo, já no processo de me assumir como travesti, transexual, foi um processo de constante troca de conhecimento. Eu sempre buscando reeducar a minha família sobre como lidar comigo e sobre como lidar com pessoas trans, travestis, transexuais.


3 – Como mulher preta, em uma sociedade racista, provavelmente você já deve ter passado por processos de preconceito antes da transição. Mas, depois da transição, você sabia que as chances de o preconceito iriam aumentar muito? Em nenhum momento pensou em desistir? Como você lidou e lida com isso?

Enquanto uma mulher preta e uma travesti preta, eu sempre entendi que existe uma hierarquia de opressões, de fobias sociais. Não basta você ser preta, você ainda é travesti, você ainda é uma mulher trans e isso potencializa as agressões. Mas, em momento nenhum eu pensei em desistir disso. Esses desafios acabaram se tornando um impulso maior para eu ter orgulho do meu corpo, das minhas narrativas e das minhas vivências. Costumo dizer que a minha zona de conforto é a minha zona de confronto. Acho importante criar uma relação com esses confrontos diários, essas opressões que me são direcionadas, para poder impulsionar um amanhã melhor para as minhas e para os meus.

4 – Quais os principais problemas você vê na atual sociedade brasileira que afetam os transexuais? Por quais deles você já passou?

Talvez, o maior problema que pessoas transexuais e travestis enfrentam na sociedade é a ausência de naturalização e de humanização. A sociedade não conseguiu nos reconhecer enquanto humanos, enquanto sujeitos naturais. As pessoas cisgênero não conseguiram entender que nós, pessoas trans, devemos, sim, ter acesso à escola, à educação básica, devemos ocupar mais as universidades. Nosso maior problema é toda essa falta de naturalização, das pessoas não nos reconhecerem enquanto humanos e tornar, de alguma forma, a transfobia cultural.

5 – Você acha que a comunidade LGBTQIA+ é unida? Existe preconceito entre iguais?

Eu acho que como qualquer comunidade, a LGBTQIA+ não é uma unidade, ela não é homogênea. Acredito muito que dentro da diversidade existam especificidades. Somos pessoas diversas, ainda enquanto LGBTQIA+. Mas, especificamente nós, da letra “T”, somos inviabilizadas. As pessoas se lembram da comunidade LGBTQIA+ apenas com base no gay. Tanto é que as pessoas falam, até hoje, Parada Gay. E dentro da comunidade existe machismo, transfobia, racismo e diversos tipos de preconceito. Eu, particularmente, luto muito para que a comunidade consiga se entender com base na interseccionalidade, nas diferenças que existem entre nós, para além das letras que compõe a sigla.

6 – Qual a importância de se ter no calendário um mês dedicado ao orgulho LGBTQIA+?

Este mês se faz necessário quando a gente vê que essas pessoas são marginalizadas socialmente, que não se veem na mídia, que não se veem ocupando cargos políticos, que não se vêem representados na sociedade, que não se se vêem em momento nenhum. Essas pessoas precisam, de alguma forma, ser lembradas, não só em  junho, mas o ano todo. Seria um sonho, para mim, poder fazer com que as pessoas entendessem que, para além do mês de junho, existem pessoas travestis, transexuais, lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais falando a todo o momento. Mas, ainda assim, o mês de junho é muito simbólico e significativo para a gente começar a pensar na nossa tomada de poder e do quanto às pessoas LGBTQIA+ também tem direito a ter uma data.

7 – Qual a mensagem você gostaria de deixar aos leitores?

Gostaria que todos soubessem que é possível pensar nas pessoas LGBTQIA+ para além do mês de junho, é importante pensar sobre quais são as pessoas travestis e transexuais que integram a sua vida. Eu gosto muito de perguntar isso, para que as pessoas possam começar a refletir o quanto os trans não fazem parte do vínculo social. Aí, eu jogo uma pergunta: quantas travestis e transexuais você tem como amigas? Quantas pessoas trans já entraram na sua casa? Quantas pessoas trans você já abraçou? Nós não fazemos parte da sociedade e é comum que as pessoas não consigam pensar em nenhuma pessoa trans com quem ela tenha se relacionado em algum momento da vida, porque nós somos tão desvalorizadas, ao ponto de nós não integrarmos as relações sociais e os espaços de sociabilidade. A mensagem que eu quero deixar é uma reflexão a partir deste mês de junho, para que as pessoas comecem a repensar sobre como inserir essas comunidades marginalizadas no dia a dia.


* Giovanna indica o documentário Revelação, disponível na Netflix, para os que desejam entender melhor sobre diversidade!