Bar do Bolão na Praça Duque de Caxias segue aberto até domingo (26); fregueses têm lotado o estabelecimento com apetite, histórias e saudade
Prestes a fechar as portas em seu endereço histórico, o bar deve reabrir em novo local
Nesta semana, mal se conseguia conversar na entrada do Bolão, em frente à Praça Duque de Caxias, em Santa Tereza. As vozes dos clientes dentro do bar — um dos símbolos da boemia belo-horizontina — se misturavam às de quem esperava do lado de fora, na fila que já virava a esquina da Rua Mármore.
O som de carros e motocicletas estacionando, cadeiras arrastadas e talheres batendo nos pratos completava a sinfonia da saudade antecipada. A unidade histórica fechará as portas no próximo domingo (26) e, embora a reabertura em outro endereço seja questão de tempo, ninguém esconde a tristeza: há mais de meio século, Bolão e Santa Tereza são indissociáveis.
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A movimentação intensa dos últimos dias é consequência de uma ordem judicial que chegou no início de outubro, determinando a desocupação do imóvel na Praça Duque de Caxias, onde o bar funciona há 55 anos. Segundo Luiz Cláudio Rocha, um dos proprietários, os cinco sócios ficaram surpresos. Cacau, como é conhecido, afirma ao Sou BH que a família já sabia que o casarão carecia de reformas, mas acabou deixando o tempo passar — entre outras razões, por não querer ver o estabelecimento fechado.
De acordo com a chamada ação renovatória, prevista na Lei do Inquilinato, contratos como os do Bolão, que constroem uma clientela ao longo do tempo e uma identidade fortemente associada ao local, podem ser renovados de maneira compulsória, desde que o locatário atue no mesmo ramo há pelo menos três anos e ocupe o imóvel por cinco ou mais. No entanto, existem exceções. O proprietário pode negar a continuidade caso comprove que pretende utilizar o espaço para outro fim ou reformá-lo, que foi o que aconteceu agora em Santa Tereza. O dono alegou a necessidade de obras estruturais, como na parte elétrica e no telhado. Também será preciso providenciar o seguro.
Para Luiz Cláudio, mais do que uma questão de contrato, o fim da unidade representa a perda de um pedaço da história gastronômica, afetiva e até mesmo musical da capital mineira. “O Bolão se confunde com a memória de Belo Horizonte. Lô Borges, Sepultura, Skank, tanta gente passou por aqui”, comenta em entrevista ao Sou BH. “Todo mundo vem, de A a Z. É como se fosse uma praia, é democrático. Eu acho isso muito bacana.”
O “Bar Rocha & Filhos”, que antecedeu o Bolão, foi fundado pelo casal José da Rocha e Maria dos Passos, em 1961. Nos anos 1970 é que o estabelecimento passou a ocupar o casarão da Praça Duque de Caxias, e não demorou para se tornar parte da identidade do bairro Santa Tereza, no coração da Região Leste.
Durante décadas, ele foi uma das principais escolhas dos madrugadores em BH. As mesas do Bolão eram destino certo para quem curtia boates e shows — e para quem os fazia também. De Milton Nascimento aos garotos do Skank, de Fernando Brant à turma do Sepultura, passando por Lô Borges, Toninho Horta e outros boêmios, poucos músicos ousavam recusar um fim de farra em frente à praça.
“O Skank, se eu não me engano, até falei sobre isso, fez a música ‘Saideira’ aqui. Eles criaram um vínculo com o José Maria, o nosso tio, que era quem tinha o apelido de Bolão”, conta Luiz Cláudio, neto do fundador e membro da terceira geração da família.
Permanecer ali noite adentro não era incomum. Nostálgico, Cacau se lembra das vezes em que ajudava o tio a fechar o bar. Enquanto jogavam água na calçada, ainda havia fregueses comendo. “As pessoas não reclamavam, não queriam saber, só queriam ficar ali e matar a fome. Olha a intimidade, é como se você estivesse em casa, entendeu? É uma história que fica”, se emociona.
A maior parte dos frequentadores, mesmo hoje, segue fiel aos carros-chefes do cardápio: o espaguete à bolonhesa, que foi criado em um pequeno fogareiro por José Maria e rendeu ao bar a alcunha de “Rei do Espaguete”, e o Rochedão, prato que leva arroz, feijão, ovo, batata frita e um bife. Na era de ouro do Bolão, a casa chegou a servir cerca de 500 refeições diárias. Quase 15 mil pratos no mês.
Entre os que se despedem está Anabele Oliveira Monteiro, de 28 anos, frequentadora há uma década. Acostumada a ir ao bar depois de shows, ela almoçou no Bolão pela primeira vez na quarta, às vésperas do encerramento. Escolheu o espaguete, seu preferido, embora o filé à parmegiana ocupe um lugar especial na memória.
A belo-horizontina lamenta o fim dos bons encontros que o lugar rendeu. “O outro Bolão”, argumenta Anabele, se referindo à unidade da Rua Alberto Cintra, no bairro União, “não tem a mesma energia”. “O Santa Tereza tem história, carrega muita coisa junto. A gente torce para que seja um ‘até breve’.”
Outras pessoas na fila de espera, empolgadas, vão listando em voz alta os sabores que mais amam no bar e as aventuras que viveram nele. Ou perto. Um senhor evoca o primeiro beijo, dado na porta do estabelecimento. Uma mulher revela que a filha foi concebida na Gabro, rua a dez minutos dali, entre um e outro Rochedão com o marido.
“O Santa Tereza, para mim, é o casamento. Bolão e Praça, Praça e Bolão. Como se fosse uma cidade do interior”, suspira Luiz Cláudio.
O negócio, que sobreviveu à ditadura militar, a trocas de governos e à pandemia da Covid-19, deve reabrir em outro ponto da capital. Propostas já surgiram, inclusive dentro do próprio bairro e nos arredores, como no Santa Efigênia e no Floresta. Contudo, Cacau pondera que os espaços não têm a mesma essência. “É bem diferente do que a gente tá acostumado. O do Floresta, por exemplo, é praticamente no Centro, perto do viaduto. Não enxerguei essa possibilidade.”
Para ele, o fechamento é semelhante à perda de alguém muito querido. Crescido entre os fundadores e iniciado no bar há cerca de 40 anos, quando ainda tinha 12, Luiz Cláudio acompanhou a trajetória de gerações de fregueses e de funcionários. “Hoje mesmo o Beto estava com o olho cheio d’água”, diz sobre José Afrânio de Paula, ou Beto do Bolão, o gerente de 64 anos que já foi garçom e balconista.
Ele frisa a dedicação da equipe de 26 trabalhadores e a fidelidade das pessoas que sempre voltam: de clientes pedindo cartazes de recordação a moradores do Espírito Santo aparecendo para um último jantar, é como se um mundo inteiro estivesse passando pelo Bolão.
Até o dia 26, quando as portas descerem de vez, as filas devem continuar extensas. Alguns pratos têm levado mais de uma hora para serem servidos, mas ninguém reclamou.
“Ontem eu trabalhei com cerveja quente, porque não estava esperando isso tudo. Então a gente já se organizou para não deixar faltar nada, apesar de precisar reduzir algumas coisas do cardápio, porque não tem como fazer estoque, né? A turma é super compreensiva, tá todo mundo entendendo a situação, não tem reclamação. Quem tá vindo é porque ama mesmo. Simplicidade e comida boa, nós entendemos é disso”, celebra.